Introdução
A doença hepática alcoólica é uma das consequências clínicas
mais graves do uso crônico do álcool. Além disto, o uso excessivo e crônico do
álcool é a causa isolada mais importante de doença e morte por hepatite e
cirrose nos Estados Unidos1.
O fígado normal
O funcionamento normal do fígado é essencial à vida. O fígado é
o maior e, em alguns aspectos, o mais complexo órgão do corpo humano. Uma de
suas principais funções é degradar as substâncias tóxicas absorvidas do
intestino ou produzidas em outras áreas do corpo e, em seguida, excretá-las
pela bile ou pelo sangue como subprodutos inofensivos.
Além disto, o fígado secreta bile no intestino delgado para
ajudar na digestão e absorção de gorduras, armazena vitaminas, sintetiza
proteínas e colesterol, metaboliza e armazena açúcares. O fígado controla a
viscosidade sanguínea e regula os mecanismos de coagulação2.
Doença hepática alcoólica
O fígado é um órgão particularmente susceptível aos danos
provocados pelo álcool pois ele é o principal sítio de metabolização desta
substância no organismo.
Além do fígado ser um dos maiores órgãos do corpo humano, ele
apresenta a capacidade de regenerar-se, consequentemente, os sintomas
relacionados à lesão hepática provocada pelo álcool podem não aparecer até que
esta seja realmente extensa. No sexo masculino, esta condição pode ser
alcançada pelo uso de aproximadamente 2 litros de cerveja, 1 litro de vinho ou
240 ml de bebidas destiladas ingeridas diariamente por pelo menos 20 anos. Nas
mulheres, a quantidade necessária para produzir prejuízos semelhantes é de
apenas ¼ à ½ deste montante3.
O consumo diário de bebida alcoólica, por um longo período de
tempo, é uma condição fortemente associada ao desenvolvimento de lesões
hepáticas, porém, apenas metade dos usuários que a consomem com esta frequência
vão desenvolver hepatite ou cirrose alcoólica4. Estes achados
sugerem que outras condições como: hereditariedade, fatores ambientais ou ambos
devam influenciar no curso da doença hepática.
Metabolismo do álcool
A maior parte do álcool ingerido é metabolizado no fígado pela
ação da enzima álcool desidrogenase (ADH). Esta enzima converte o álcool em
acetaldeído, que mesmo em pequenas concentrações, é tóxico para o organismo. A
enzima aldeído desidrogenase (ALDH), por sua vez, converte o acetaldeído em
acetato3. A maior parte do acetato produzido, atinge outras partes
do organismo pela corrente sanguínea onde participa de outros ciclos
metabólicos.
O sistema de enzimas microssomais oxidativas (SEMO) pertencem à
família dos citocromos e compreendem um sistema alternativo de metabolização do
álcool no fígado. O SEMO transforma o álcool em acetaldeído pela ação do
citocromo P450 2E1 ou CYP2E1 presentes nas células hepáticas3.
Tipos de lesões hepáticas provocadas pelo
álcool
Em indivíduos que fazem uso abusivo do álcool as doenças
hepáticas mais encontradas são:
1. Esteatose alcoólica (fígado gorduroso). A deposição de
gordura ocorre em quase todos os indivíduos que fazem uso abusivo e frequente
do álcool. Contudo, é uma condição clínica que também pode ocorrer em
indivíduos não alcoolistas, após um único episódio de uso abusivo do álcool. A
esteatose corresponde ao primeiro estágio da doença hepática alcoólica. Caso o
indivíduo pare de beber neste estágio, ele recuperará sua função hepática.
A esteatose também pode ocorrer em indivíduos diabéticos, obesos, com
desnutrição protéica severa e usuários de determinados medicamentos3.
2. Hepatite alcoólica: esta condição implica em uma inflamação e/ou destruição
(ex. necrose) do tecido hepático. Os sintomas incluem: perda de apetite,
náusea, vômito, dor abdominal, febre e em alguns casos, confusão mental. Embora
esta doença possa levar à morte, na maior parte das vezes ela pode ser
revertida com a abstinência alcoólica. A hepatite alcoólica ocorre em
aproximadamente 50% dos usuários frequentes do álcool4.
3. Cirrose alcoólica: É uma forma avançada de doença hepática decorrente de um
dano progressivo das células hepáticas. A cirrose costuma ser diagnosticada em
15 a 30 % dos usuários crônicos e abusivos do álcool.
Um fígado cirrótico é caracterizado por uma fibrose extensa que
compromete o funcionamento do fígado podendo inclusive prejudicar o
funcionamento de outros órgãos como cérebro e rins. Embora a cirrose alcoólica
possa levar o indivíduo à morte em função de suas complicações (ex. falha renal
e hipertensão portal), ela pode ser estabilizada pela abstinência completa do
álcool3.
Estas três condições clínicas costumam estar sequencialmente
relacionadas, de forma progressiva, da esteatose à cirrose. Contudo, alguns
indivíduos podem desenvolver cirrose sem ter tido hepatite e algumas hepatites
de início súbito e curso rápido levam à morte antes de desenvolver cirrose.
De que maneira o álcool danifica o fígado?
Há muitos mecanismos pelos quais o álcool lesa o fígado, além do que, nem todos
os alcoolistas desenvolvem problemas hepáticos a despeito da quantidade de
álcool consumido. Abaixo seguem alguns dos fatores de risco e mecanismos
implicados no desenvolvimento de lesão hepática:
Fatores genéticos
Diferenças genéticas podem explicar o porquê de alguns alcoolistas
desenvolverem cirrose e outros não. O tecido cicatricial que é formado no
fígado cirrótico é composto de proteína de colágeno. Sugere-se que a
estimulação para a síntese do colágeno ocorra pela ativação do gene do
colágeno. Desta forma, especula-se que diferenças individuais para este gene
podem estar associadas com diferenças no desenvolvimento de cirrose alcoólica
entre os alcoolistas2.
Variações genéticas nas
enzimas que metabolizam o álcool
Os genes são
responsáveis por direcionar a produção de todas as proteínas do corpo,
inclusive as enzimas. Pequenas diferenças em um determinado gene (ex.
polimorfismo) podem levar a pequenas diferenças na proteína correspondente mas
a grandes diferenças nas atividades de uma enzima. Nenhum polimorfismo isolado
para ADH esteve claramente associado a um dano hepático pelo uso do álcool,
contudo, variações no ALDH estiveram envolvidas na doença hepática alcoólica.
Existem 2 tipos de alelo
para o ALDH, o 2*1 e o 2*2. O alelo ALDH 2*2 está presente em aproximadamente
50 % dos descendentes de Japoneses e Chineses. Pessoas que contém este gene
tendem a acumular quantidades tóxicas de acetaldeído mesmo após um uso moderado
do álcool. Os sintomas deste acúmulo são: rubor facial, aumento da pressão
arterial, taquicardia, dores de cabeça, náuseas e vômitos. Consequentemente
estas pessoas criam uma aversão ao álcool. Pessoas em que o alelo ALDH 2*1 está
pareado com o alelo ALDH 2*2 apresentam uma resposta mais amena para estes
efeitos3.
Radicais livres e
acetaldeído
Os radicais livres são
fragmentos moleculares com grande poder reativo liberados durante a
metabolização do álcool e que causam grande parte dos danos celulares
existentes no processo de degeneração hepática.
O acetaldeído que é o
primeiro produto da metabolização do álcool e parece ser importante na gênese
dos radicais livres.
Gênero
Mulheres desenvolvem
cirrose com doses acumuladas de álcool ao longo da vida bem menores do que os
homens.
Duas teorias foram propostas para explicar estas diferenças:
A primeira envolve o ADH
gástrico, ou seja, além do fígado o ADH pode ser encontrado no estômago e no
intestino. Verificou-se que as mulheres apresentam uma menor atividade do ADH
no estômago do que os homens, fazendo que com grande parte da metabolização do
álcool, nas mulheres, ocorra no fígado. Desta maneira, uma grande porcentagem
do álcool ingerido nas mulheres atingem o fígado predispondo-as à lesões
hepáticas.
Outra teoria, diz
respeito a uma diferença no metabolismo de ácidos graxos que poderia contribuir
para um dano hepático acelerado nas mulheres. O consumo crônico do álcool inibe
a maior via de metabolização dos ácidos graxos no fígado, acumulando-os e
podendo provocar lesões hepáticas. A ativação de vias alternativas para a
metabolização dos ácidos graxos poderia previnir a formação destas lesões,
contudo, foi demonstrado em ratos que esta ativação é bem menos eficaz em
fêmeas2,3.
Dieta
Antes dos anos 70,
acreditava-se que a cirrose era consequente ao déficit nutricional frequente em
usuários crônicos do álcool. Com o passar do tempo, portanto, mostrou-se que o
álcool, por si só, era capaz de danificar o fígado mesmo que o indivíduo estivesse
nutricionalmente preservado. Atualmente, acredita-se que há uma interação entre
a toxicidade do álcool e fatores nutricionais 2. Por exemplo, deficiências
vitamínicas podem diminuir a proteção hepática frente aos radicais livres
(fragmentos moleculares com grande poder reativo liberados durante a
metabolização do álcool).
Infeção pelo vírus da
hepatite C
A maior parte dos
indivíduos com o vírus da Hepatite C apresentam sintomas leves, porém, em
alguns casos, a hepatite C pode levar a uma doença progressiva do fígado,
cirrose ou câncer.
A infecção pelo Vírus do
Hepatite C aumenta o risco e pode influenciar na progressão de lesões hepáticas
em indivíduos alcoolistas.
Café e tabaco
Alcoolistas que fumam
mais de um maço de cigarro por dia apresentam um risco de cirrose 3 vezes maior
do que indivíduos não tabagistas. De maneira contrária, alcoolistas que
consomem mais do que 4 xícaras de café por dia apresentam uma incidência 5
vezes menor de cirrose do que os que não tomam café. A causa para esses efeitos
permanece desconhecida.
Conclusões
O consumo intenso e
crônico do álcool predispões à doença hepática em indivíduos susceptíveis.
Contudo, o fato de apenas uma proporção destes indivíduos desenvolverem
hepatite ou cirrose, indica a importância de outros fatores como a
hereditariedade, gênero, dieta e outras formas de doenças do fígado
influenciando o risco para a doença hepática alcoólica.
A maior parte das lesões hepáticas causadas pelo álcool são atribuídas ao
metabolismo do álcool e seus produtos de metabolização.
Outras pesquisas trarão outras possibilidades de mecanismos biológicos
envolvidos no dano hepático, além de alternativas de tratamento tanto
dependênde ou não de álcool.